Com Elizabeth Taylor, Rock Hudson e James Dean
(4/5)
O tratamento concedido aos filmes com status quo de “clássico” é de puro endeusamento. Deus livre do pobre coitado que ousar questionar a perfeição de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1940), ou a qualidade artística, plástica e filosófica de toda obra de Kubrick pós-Lolita (Lolita, 1962). Nos Estados Unidos, é quase um crime falar mal do “melhor filme de Natal” já feito – isto é, A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life, 1946), de Frank Capra. Para alguns – e isso parece ser um consenso de unanimidade inquestionável –, quando um filme atinge este status, meu Deus, não existe nenhum tipo de defeito, e quem discorda deve ir para a forca, mas antes, deve pedir desculpas pela afronta e beijar o pôster do filme. Quase igual as “bruxas” que foram queimadas vivas durante a Santa Inquisição.
Agora, claro, alguns filmes realmente são perfeitos e não devem ser questionados. O supracitado Cidadão Kane, Apocalypse Now, quase toda filmografia de David Lean, etc. Mas eu estou falando aqui de pseudo-intocáveis, no caso, este Assim Caminha a Humanidade, de George Stevens. Aqui estou eu, falando do maior sucesso da Warner Bros., até o lançamento de Super-Homem – O Filme (Superman, 1978), outro filme que é cultuado por todos, apesar de apresentar falhas grosseiras (claro, Super-Homem é um blockbuster, logo, sua qualidade é totalmente discutível).
O culto que existe ao redor de Assim Caminha a Humanidade (título nonsense conferido ao filme no Brasil, que mata toda a poesia do título original, Giant) é perfeitamente compreensível. Para começar, este é o “canto do cisne” de James Dean. O ator, que viria morrer alguns dias depois do término das filmagens, num trágico acidente de carro, faz aqui, provavelmente, sua melhor performance. Outro fator que certamente faz Giant (assim o filme será chamado de agora em diante) é a sua mensagem moralista. O diretor George Stevens discute aqui temas que, até então, Hollywood torcia o nariz, como o preconceito racial (no caso, contra os comanches – imigrantes mexicanos no Texas), a liberdade feminina e a exploração sem controle da terra em busca de petróleo. Tudo isso compactado numa saga emocionante que cobre mais de 40 anos na vida de uma família desfuncional. Apesar desta emoção, o filme carrega erros grosseiros, que serão discutidos em breve.
Giant conta a história de Leslie (Elizabeth Taylor). Filha de um rico proprietário de terras de Maryland, Estado no Leste dos EUA. Ela se apaixona por Bick Benedict (Rock Hudson), um rico fazendeiro do Texas, que veio comprar um cavalo do pai de Leslie. Eles se casam rapidamente em Washington (o filme não mostra isso, mas o fato é repetidamente recordado na trama) e ela se muda – claro – para o Texas.
Já na propriedade de Benedict, nós conhecemos sua irmã, Luz (Mercedes McCambridge), a mulher-macho linha-dura que controla com mãos de ferro todo o local. Ela conta com o frio, anestesiado, bêbado e antissocial Jett Rink (James Dean), que se apaixona por Leslie, mas nunca se declara, apesar de dizer constantemente que ela é a mulher mais bonita que já vira. Mesmo com uma boa relação com Luz, Jett não se dá bem com Bick. Ambos nutrem um ódio desmedido um com o outro. Ao mesmo tempo, descobrimos que Leslie é uma verdadeira forasteira. Ela se preocupa com a situação dos comanches locais – pessoas que Bick, Jett, Luz e todos os outros brancos têm horrores e são tratados com desprezo total e absoluto. Leslie também não se adapta ao comportamento das mulheres locais, brancas ou comanches. Após o nascimento do casal de gêmeos de Bick e Leslie, acompanhamos a sofrida saga, como dito, dos Benedict.
Giant é um filme que com certeza David Lean gostaria de ter dirigido. No início do filme, isto é, nas sua primeira hora e meia, Stevens investe em planos longos, como aqueles vistos em Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962). Stevens insiste em mostrar toda a vastidão de terras secas que cercam a casa da propriedade dos Benedict. É quase metafórico. O coração de uma família coordenada por um homem cheio de preconceitos e desprezo reside, exatamente, dentro de uma casa no meio do nada. O engraçado é que Bick Benedict diz que seu avô “construiu esta casa para provar para os metidos do Leste que eram tão bons quanto eles.” Mas tudo o que se vê é uma terra árida e sem vida, contrapondo-se com as primeiras cenas do filme, que mostram as terras verdejantes de Maryland. (A própria Leslie pergunta se não há verde no Texas.)
Stevens em seu filme ainda explora muito bem o patriotismo desacerbado que existe no Sudoeste dos EUA. Repare na expressão inflamada e odiosa que Bick faz quando Leslie, ainda – novamente – em Maryland, diz que o Texas foi roubado do México “quando o Sr. Austin chegou lá com suas 300 famílias”. Bick retruca: “Você não conhece a história d'O Álamo?”. A verdade é que O Álamo foi um massacre ocorrido durante a Revolução Texana, onde 2.400 soldados mexicanos trucidaram 260 soldados texanos no Forte Álamo, anteriormente uma missão (você sabe o que é uma missão, não sabe?). O saldo foi de 400 baixas mexicanas e 258 mortes texanas. O fato foi um pivô para, depois, a queda dos mexicanos na região, dando origem a outros massacres. A frase “Lembrem-se d'O Álamo!” virou uma constante no Sudoeste americano. O curioso é que – de todo jeito – O Álamo foi uma “vingança” dos mexicanos contra a crueldade dos americanos texanos.
Agora, entre preconceitos debatidos e boa fotografia, Stevens falha miseravelmente no ritmo do seu filme. Para contar uma saga de 30, 40 anos num filme de três horas, a mudança entre lentidão contemplativa e rapidez narrativa é brusca e perceptível. O filme – que pode ser dividido tranquilamente em dois atos – primeiramente mostra os preconceitos da região, num dos primeiros atos mais longos da história do Cinema. Por exemplo, são necessárias uma hora e meia para que finalmente Leslie perceba que aquele não é o seu lugar, uma hora e vinte para que notemos que a personagem de Dean sofre de um sério problema mental. Isso tudo muda, estranhamente, no segundo e terceiro ato, onde o filme parece ser feito nas coxas, e as personagens envelhecem mais rapidamente.
Felizmente isso não compromete a narrativa do filme. O elenco todo muito jovem atua perfeitamente. Elizabeth Taylor transmite uma depressiva e desesperante sensação de perda. Se nos primeiros minutos ela era uma jovem rica e espevitada do Leste norte-americano, lentamente se transforma numa infeliz esposa de um proprietário de terras. Rock Hudson também está bem como Bick, preconceituoso machão texano, ligado as suas raízes. Hudson interpreta um homem tão preconceituoso e machista que só falta dizer “Meu Deus, Sue, os mexicanos estão dentro das muralhas! Se eles separarem você, salve minha criança!”.*
Mas nenhum desses se comparam a James Dean. A composição da sua personagem é simplesmente brilhante. Dean – talentoso e lastimável perda do cinema – compõe sua personagem com uma tristeza de quebrar o coração, sempre no canto do enquadramento, com o chapéu enterrado na cabeça, cobrindo-lhe os olhos. Falando pouco, sem abrir a boca, contra a luz, sempre na sombra. Jett/Dean é o típico forasteiro onipresente na filmografia de George Stevens. Seus trejeitos serviriam de inspiração para que, anos mais tarde, Martin Sheen pudesse compor seu Kit Carrutchers em Terra de Ninguém (Badlands, 1973), de Terrence Malick. (Aliás, alguns exteriores, como as cenas da casa, foram tomados emprestado por Malick em Dias de Paraíso (Days of Heaven, 1978).) É realmente uma pena que sua personagem tenha sido tão desprezada na sala de edição. Suas aparições, principalmente após o intervalo do filme (no DVD da Warner não há intervalo, ele foi cortado na troca de discos), se tornam cada vez mais esporádicas e inexplicáveis. Mas isso não atrapalha sua performance, a melhor da sua curta e brilhante carreira.
Entre erros e acertos, Giant é um clássico. Ao contrário do que alguns fãs neuróticos dizem, não é perfeito, longe disso. Apesar da sensação de perda que o filme deixa, o fim de uma geração, Stevens transforma sua história épica num conto moralista, que trai a si mesmo. Um belo filme correto, apenas e nada mais.
Por Victor Bruno
* Últimas palavras de Almaron Dickinson – capitão de artilharia durante o cerco d'O Álamo – para sua esposa, Susannah Dickinson, antes de ir defender a capela no cerco. Dickinson foi um dos últimos defensores mortos em ação.