Brief Encounter, 1945 / Dirigido por David Lean
Com Celia Johnson, Trevor Howard e Cyril Raymond
(5/5)
É impressionante pensar que o cineasta de grandes épicos, gravados em 70mm e com som estereofônico com cinco canais e orçamentos colossais, tivesse que passar por um filme exageradamente simples, filmando de favor a amigos.
Os filmes de David Lean são quase todos (principalmente os quatro últimos) grandes planos gerais -- os chamados long shots. Eu não estou falando apenas no aspecto cinematográfico da coisa toda. Estou falando no aspecto metafórico da questão. Em Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962) o filme é um grande long shot da situação árabe durante a I Guerra Mundial. Seguindo esta lógica, nada mais natural dizer que Desencanto é um close-up, um brilhante close-up de uma relação extra-conjugal. E seus efeitos na mente de uma mulher. E não seria a primeira vez que o diretor Lean faria esse tipo de close-up Ele revistaria um tema parecido, 25 anos mais tarde, em outro close-up, no tépido e afetado A Filha de Ryan (Ryan's Daughter, 1970).
A história de Desencanto é absurdamente simplória, extremamente comum. Laura (Celia Johnson) é uma mulher que vive uma vida normal. Dona de casa atenciosa e dedicada, preocupada com o marido e com os filhos. Faz as compras de casa todas as quintas feiras. E numa quinta também normal, ela está voltando para casa, pegando o trem. Quando vai observar a paisagem, vendo o trem passar, um cisco cai em seu olho. Prontamente o Dr. Alec Harvey (Trevor Howard) vai dar assistência a ela. Ela agradece e sai.
Na semana seguinte, ela encontra-o normalmente, os dois almoçam juntos, saem para o cinema. Eventualmente surge aí uma grande amizade. Nas semanas seguintes os dois repetem o passeio, indo ao lago, andando de bote. A situação está clara, os dois confessam estarem apaixonados. O que pode ser feito? Nada. O problema é que os dois são casados, isso não pode estar acontecendo. Não poderia acontecer em hipótese alguma. Lean segue de perto o drama de Laura, que entre mentiras e uma culpa quase dostoiévskiana, encontra o seu novo amado.
Desencanto é um filme seguro, de roteiro bem firme e direção precisa. O que poderia se transformar numa historinha melodramática de amor, que é feita ad nauseum por 11 entre 10 filmes do gênero, vira uma história, lentamente, de culpa e angústia. O filme se nega a romancear tudo, filmar no contra-luz, com belas imagens (o que é surpreendente, vindo de quem veio, como qualquer um que tenha o mínimo de conhecimento acerca da carreira de David Lean pode constatar). De certa forma, Desencanto é um filme sujo e escuro. Melancólico também, por que não? Na verdade, talvez esta seja a palavra que melhor se encaixa no filme. Desde o primeiro fotograma nós temos a impressão que há algo de muito errado. Atrás de um corriqueiro e desimportante diálogo entre o Sr. Godby (Stanley Holloway) e a dona do café ao lado da estação de trem, vemos um casal. Suas expressões são tristes e, o que, o que? Melancólicas. Este é o take inicial, e genial, e irônico de Desencanto. Some isso a uma direção destemida de Lean, e temos um filme perto do perfeito. O diretor sem medo de dar um giro com a câmera para demonstrar pavor. Coisa que, na altura, era reservada apenas aos filmes noir.
Grande parte do trunfo do filme vem do seu texto. Baseado em uma curta peça do grande autor Noël Coward, Desencanto tem falas certeiras. Não negam uma certa melodramatísse, mas não são o que poderia se chamar de clichê. São comuns. (Temos de levar em consideração que estamos falando de um romance, e como todo romance, tem aquelas falas "doces". Ninguém estabelece uma relação com falas irônicas, mas isso você já sabia, certo?) Mas interessntemente estas "falas" a que me refiro, não são os diálogos, mas sim a voice-over de Laura que permeia o filme. Essa voice-over é a voz do filme. Desencanto é uma confissão de uma mulher angustiada, que quer mais da vida, mesmo sabendo que isso tudo pode lhe deixar sem nada. E essa angústia é maravilhosamente representada por Celia Johnson. A atriz está perfeita como a personagem principal, Laura. No início do flashback (não do filme, que fique claro), ela é uma mulher radiante, feliz com a sua vida alienada. Com o andar da carruagem, quando sua teia de mentiras vai ficando cada vez mais difícil de ser sustentada, sua expressão é mais pálida e triste.
Aliás, falando do elenco, ele é quase todo formado apenas por desconhecidos. De todos apenas Trevor Howard viria se tornar um dia um astro do cinema, e atuaria 25 mais tarde com Lean em A Filha de Ryan. Naquela altura ambos já se tornariam superstars. Trevor está ótimo também como o Dr. Harvey.
Muitos outros acertos permeiam o filme. A maravilhosa trilha sonora não-original de apenas uma música (Piano Concerto No. 2, de Rachmaninoff), ou, de todos os acertos o meu favorito, a edição. O ritmo do filme é acertado. Nem muito lento para não dar sensibilidade, nem muito rápido para transformar tudo em água-com-açúcar, até por que tudo muito doce é enjoativo. É acertado. Aliás, um truque de edição que deve ser mencionado é ao início e ao final do flashback, com a silhueta de Laura, sentada e olhando para frente, dando a impressão que ela está assistindo sua própria vida. É uma bobagenzinha, mas deve ser citada.
E para quem diz que Lean, um dos maiores diretores de sempre, só fazia épicos vazios de quatro horas, ou novelas mexicanas se passando no frio polar da Rússia, é por que nunca viram este caloroso retrato de uma mulher sob influência. Leigos.
Por Victor Bruno
Os filmes de David Lean são quase todos (principalmente os quatro últimos) grandes planos gerais -- os chamados long shots. Eu não estou falando apenas no aspecto cinematográfico da coisa toda. Estou falando no aspecto metafórico da questão. Em Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962) o filme é um grande long shot da situação árabe durante a I Guerra Mundial. Seguindo esta lógica, nada mais natural dizer que Desencanto é um close-up, um brilhante close-up de uma relação extra-conjugal. E seus efeitos na mente de uma mulher. E não seria a primeira vez que o diretor Lean faria esse tipo de close-up Ele revistaria um tema parecido, 25 anos mais tarde, em outro close-up, no tépido e afetado A Filha de Ryan (Ryan's Daughter, 1970).
A história de Desencanto é absurdamente simplória, extremamente comum. Laura (Celia Johnson) é uma mulher que vive uma vida normal. Dona de casa atenciosa e dedicada, preocupada com o marido e com os filhos. Faz as compras de casa todas as quintas feiras. E numa quinta também normal, ela está voltando para casa, pegando o trem. Quando vai observar a paisagem, vendo o trem passar, um cisco cai em seu olho. Prontamente o Dr. Alec Harvey (Trevor Howard) vai dar assistência a ela. Ela agradece e sai.
Na semana seguinte, ela encontra-o normalmente, os dois almoçam juntos, saem para o cinema. Eventualmente surge aí uma grande amizade. Nas semanas seguintes os dois repetem o passeio, indo ao lago, andando de bote. A situação está clara, os dois confessam estarem apaixonados. O que pode ser feito? Nada. O problema é que os dois são casados, isso não pode estar acontecendo. Não poderia acontecer em hipótese alguma. Lean segue de perto o drama de Laura, que entre mentiras e uma culpa quase dostoiévskiana, encontra o seu novo amado.
Desencanto é um filme seguro, de roteiro bem firme e direção precisa. O que poderia se transformar numa historinha melodramática de amor, que é feita ad nauseum por 11 entre 10 filmes do gênero, vira uma história, lentamente, de culpa e angústia. O filme se nega a romancear tudo, filmar no contra-luz, com belas imagens (o que é surpreendente, vindo de quem veio, como qualquer um que tenha o mínimo de conhecimento acerca da carreira de David Lean pode constatar). De certa forma, Desencanto é um filme sujo e escuro. Melancólico também, por que não? Na verdade, talvez esta seja a palavra que melhor se encaixa no filme. Desde o primeiro fotograma nós temos a impressão que há algo de muito errado. Atrás de um corriqueiro e desimportante diálogo entre o Sr. Godby (Stanley Holloway) e a dona do café ao lado da estação de trem, vemos um casal. Suas expressões são tristes e, o que, o que? Melancólicas. Este é o take inicial, e genial, e irônico de Desencanto. Some isso a uma direção destemida de Lean, e temos um filme perto do perfeito. O diretor sem medo de dar um giro com a câmera para demonstrar pavor. Coisa que, na altura, era reservada apenas aos filmes noir.
Grande parte do trunfo do filme vem do seu texto. Baseado em uma curta peça do grande autor Noël Coward, Desencanto tem falas certeiras. Não negam uma certa melodramatísse, mas não são o que poderia se chamar de clichê. São comuns. (Temos de levar em consideração que estamos falando de um romance, e como todo romance, tem aquelas falas "doces". Ninguém estabelece uma relação com falas irônicas, mas isso você já sabia, certo?) Mas interessntemente estas "falas" a que me refiro, não são os diálogos, mas sim a voice-over de Laura que permeia o filme. Essa voice-over é a voz do filme. Desencanto é uma confissão de uma mulher angustiada, que quer mais da vida, mesmo sabendo que isso tudo pode lhe deixar sem nada. E essa angústia é maravilhosamente representada por Celia Johnson. A atriz está perfeita como a personagem principal, Laura. No início do flashback (não do filme, que fique claro), ela é uma mulher radiante, feliz com a sua vida alienada. Com o andar da carruagem, quando sua teia de mentiras vai ficando cada vez mais difícil de ser sustentada, sua expressão é mais pálida e triste.
Aliás, falando do elenco, ele é quase todo formado apenas por desconhecidos. De todos apenas Trevor Howard viria se tornar um dia um astro do cinema, e atuaria 25 mais tarde com Lean em A Filha de Ryan. Naquela altura ambos já se tornariam superstars. Trevor está ótimo também como o Dr. Harvey.
Muitos outros acertos permeiam o filme. A maravilhosa trilha sonora não-original de apenas uma música (Piano Concerto No. 2, de Rachmaninoff), ou, de todos os acertos o meu favorito, a edição. O ritmo do filme é acertado. Nem muito lento para não dar sensibilidade, nem muito rápido para transformar tudo em água-com-açúcar, até por que tudo muito doce é enjoativo. É acertado. Aliás, um truque de edição que deve ser mencionado é ao início e ao final do flashback, com a silhueta de Laura, sentada e olhando para frente, dando a impressão que ela está assistindo sua própria vida. É uma bobagenzinha, mas deve ser citada.
E para quem diz que Lean, um dos maiores diretores de sempre, só fazia épicos vazios de quatro horas, ou novelas mexicanas se passando no frio polar da Rússia, é por que nunca viram este caloroso retrato de uma mulher sob influência. Leigos.
Por Victor Bruno
2 comentários:
Nossa, Desencanto é uma pérola do cinema! E tenho tanta, mas tanta raiva quando comento dele e a maioria das pessoas não conhece...
Belo post! Voltarei aqui mais vezes!
°/
Obrigado, Marcelo!
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