quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Cão Branco

White Dog, 1982 / EUA / Dirigido por Samuel Fuller
Com Kristy McNichol, Paul Winfield e Burl Ives

Precisamos discutir que o racismo é uma doença? Creio que não. Apesar disso ser uma coisa tão óbvia, clara como o dia, ainda existem pessoas que crêem que o certo é achar que é superior por que são de uma determinada cor. É ridículo, mas faz parte da nossa realidade. É algo que temos que lidar.

O racismo no cinema é algo realmente difícil de se lidar, por que... veja bem. Existem várias maneiras de se discutir o assunto numa película. Para mim a melhor maneira é se mostrar isso com uma certa frieza. Tudo bem que o importante é dizer "Racismo é ridículo. Veja como é um horror." O diretor ganha pontos com isso. Mas... não se pode transformar o assunto em pieguice. Não se pode fazer como o Spike Lee faz, generalizar tudo e dizer que todos os brancos são racistas. Aliás, Lee é muito criticado por isso (há um episódio em Family Guy em que nos é apresentado um pequeno flash sobre "As falas de um branco num filme de Spike Lee." A cena corta e aparece um cara branco grunindo como um neendertal).

Por que essa introdução? Por que nas mãos erradas (essas mãos seriam supostamente de Lee) o maravilhoso Cão Branco de Samuel Fuller se transformaria num líbelo aos negros. Lee comete o terrível erro de mostrar sempre os afro-descendentes como minoria oprimida, quase sem vontade. Não é assim que acontece. Fuller faz aqui um líbelo à igualdade das raças. Não há culpados, fora os racistas, neste filme.

Cão Branco conta uma história no mínimo interessante. Certo dia, ou melhor -- certa noite -- a aspirante a atriz Julie Sawyer (Kristy McNichol, linda) atropela um pastor alemão. Após tratá-lo dos ferimentos (e de pagar 250 dólares), Julie acaba caindo na real e descobre que não tem para onde levar o cão, há não ser para o abrigo, onde eventualmente será "posto para dormir". Rapidamente o cão está totalmente recuperado do acidente, e mostra-se brincalhão e calmo.


Em uma outra noite um estuprador entra na casa de Julie, o cão não demonstra ser tão dócil assim e derruba brutalmente o assassino. Que bom, né? Julie conseguiu um cão de guarda magnífico. Entretanto não é bem assim. O cão foge da casa e mata cruelmente um limpador de rua e, em seguida ataca uma amiga de Julie. A coincidência: ambas as vítimas eram negras. Logo a aspirante a atriz descobre que tem em mãos um cão de ataque. E não um cão de ataque comum: é um "cão branco". Um tipo de cão treinado especialmente para atacar (e de preferência matar) non-whites (modo imbecil que os norte-americanos chamam os negros). Sendo assim, Julie resolve levar o cão a um lugar onde possa ser re-educado. O homem que provavelmente conseguirá esta façanha chama-se Keys (Paul Winfield), que, irônicamente, é um negro.

O filme é fantástico desde o seu primeiro fotograma. Fuller conduz a história de modo apaixonante. Aliás, logo a cena do atropelamento é fantástica. Não escutamos nada, apenas o barulho do choque entre o carro e o cão. Fuller é um cineasta inteligente, e segue fielmente a cartilha ensinada por Hitchcock que diz que o que realmente causa medo (ou, no caso do filme, choque) é o que não pode ser visto. Cão Branco não trás, em momento algum, cenas brutais, onde o sangue escorre. Há sangue presente? Sim, claro, mas nunca corpos destroçados. Não há por que mostrar; Fuller sabe disso.

Alguns outros aspectos tecnicos do filme são dignos de nota, os principais deles são a ótima fotografia excelente de Bruce Sturtees, que investe em ângulos baixos e é abundante em closes. O outro aspecto importante (e de longe o melhor) é a sensacional trilha sonora do mestre Ennio Morricone. Aliás, eu estou assobiando-a neste exato momento. Ela é calma, mas, dependendo da situação, tensa.


O título "Cão Branco" me parece uma ironia. O "cão" do título pode se referir não ao animal, mas para o homem e seus preconceitos. Não qualquer homem; o homem branco racista. Para Fuller a prática do racismo é animalesca, não humana. Contradiz tudo aquilo o que é certo para nós, e se torna ainda mais animal quando condicionamos um ser puro, sem preconceitos, para odiar uma pessoa só por que ela é de determinada cor. Aliás, para Fuller, nem o próprio cão sabe o que está fazendo. Em determinado momento Keys fala o seguinte: "Os cães distinguem as cores, não as raças." Racismo é uma doença mental, e não tem cura.

Outro tema extremamente importante que é abordado pelo filme é a hipocrisia, mas este em escala bem menor. Para citar um exemplo, vejamos a própria personagem principal. Julie, no princípio do filme, não quer dar o cão para o abrigo, onde eventualmente seria morto (de forma cruel, aliás. Crueldade é outro tema abordado pelo filme). Afinal de conta, esta bomba relógio de quatro patas salvou sua vida. Entretanto, quando o cão mata um homem numa igreja (numa cena aterradora e extremamente cínica), Julie clama pela morte do cão. Perfeito.

Cão Branco tem outros aspectos excelentes. O relenco encabeçado por Kristy McNichol está ótimo. Aliás, McNichol tem uma cara de bondade e inocência que condiz perfeitamente com a personagem. Paul Winfield arrasa como o treinador de animais negro que já passou por muita coisa na vida. Talvez sua atuação seja caricata demais, mas eu gostei bastante.

Entretanto nem só de glórias vive Cão Branco. O filme também serve como válvula de escape para uma outra opinião de Samuel Fuller: o cinema está perdendo para os efeitos especiais. Em uma cena particularmente idiota, a personagem de Burl Irves joga uma navalha num pôster do robô R2-D2. Tudo bem, Fuller, eu concordo, mas eis uma coisa que não era necessária. Outro erro fatal do filme é ignorar totalmente o universo da personagem Julie. O que acontece com a personagem Roland Gray? Desaparece completamente. O que poderia ser um affair amoroso de Julie, transforma-se num ponto de interrogação. (E se fosse um affair amoroso seria um dos maiores clichés que já vi na vida.)

Cão Branco não é perfeito. Mas mostra o talento assustador de um cineasta renegado por Hollywood. Poucos cineastas tem um controle de cena como o de Fuller. As cenas em que o cão ataca são absurdamente realistas, nervosas, assustadoras. É um filme forte, duro, que mostra como o preconceito pode ser doentio. Fuller pinta o preconceito com pessimismo, como um caminho sem volta. E não tem. Coitado do cão, vítima das circunstâncias. Circunstâncias plantadas por nós.

Nós não. Eles, os cães brancos.

Nota: 4 estrelas em 5

Por Victor Bruno

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