segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Através de um Espelho

Såsom i en spegel, 1961 / Dirigido por Ingmar Bergman

Com Lars Passgård, Harriet Andersson, Gunnar Björnstrand e Max von Sydow

Para começar, um trecho da Bíblia:
"No presente vemos por um espelho e obscuridade; então veremos face a face. No presente conheço só em parte; então conhecerei como sou conhecido."
O trecho reproduzido acima está presente na primeira epístola aos coríntios, no capítulo 13. Mas por que eu reproduzi um trecho da Bíblia nesta crítica? Ora, por que este é um trecho de fundamental importância para a compreensão da obra-prima de Ingmar Bergman, Através de um Espelho.

Mais uma vez o cineasta suéco volta ao tema da família, no seu típico cinema humanístico. Através de um Espelho é uma desconstrução sentimental de uma família desestruturada psicológica e espiritualmente (como tantas outras no cinema bergmaniano, vide Fanny & Alexander). Gente egoista, racionalista e desesperada povoa a tela de Ingmar Bergman neste filme. Esta "gente" sofre como nunca e precisa de carinho.

Neste filme esta "gente" são David (Gunnar Björnstrand, o egoísta racionalista), Minus (Lars Passgård, o filho desesperado que busca atenção), Karin (Harriet Andersson, a filha louca) e Martin (Max von Sydow, o único sensato do filme). Num dia de verão eles resolvem viajar para a casa de praia, afim de comorar a saída recente de Karin do hospital. A cena inicial, cruelmente irônica, não é nem reflexo do que veremos pelos próximos 90 minutos. Eles estão felizes, tomando banho no mar. Mas logo veremos que nada daquilo é real, é tudo fachada para o sofrimento que cerca aquelas quatro pessoas.


Agora, vamos analisar um pouco a obra. O título Através de um Espelho vem diretamente do trecho da Bíblia citado no início da crítica. O significado que os estudiosos teólogos aplicam a esta passagem é que não se pode compreender a vida em sua integridade enquanto estamos neste mundo (aos olhos da filosofia cristã, é claro). É preciso passar para o outro plano -- ou, para o outro lado do espelho, se quiseres algo mais poético -- para compreender tudo. Observe o trecho final: "No presente só conheço em parte; então conhecerei como sou conhecido." Isso é a justificativa para o título certo? Errado. Isso é a justificativa para todo o Através de um Espelho. Bergman, neste filme, faz uma viagem de conhecimento interior.

A personagem mais interessante do filme é, sem dúvidas Karin, numa interpretação inspirada de Harriet Andersson. Ela vive entre dois mundos, o real e o das suas alucinações. Mas este mundo alternativo, se bem analisado, pode ser o outro lado do espelho do trecho citado na epístola aos coríntios. Dentro da cabeça de Karin uma voz (que pode ser a de Deus, talvez) guia suas ações. E são estas ações que acendem a pólvora da trama.

O estudo das personagens continua, mas sempre gravitando ao redor. A viagem de conhecimento interior guiada por Bergman continua na persona desgastada e sofredora do escritor David, interpretado magistralmente por Gunnar Björnstrand. O olhar perdido, às vezes perplexo, de Björnstrand condiz perfeitamente com a sua personagem. Suas ações são egoístas (ele chega ao ponto de dizer que gostaria de se matar pelo simples fato de não aguentar o sofrimento, revelando aí uma personalidade misantrópica) e condescendentes, não importa se é com o seu filho. Aliás, seu filho Minus é, pelo menos para mim, a verdadeira personagem principal deste filme. O Minus de Lars Passgård é quem leva toda a carga dramática do filme. Todas as ações das personagens vão influir diretamente na personagem de Passgård. Isso fica bem claro no seu olhar perplexo ao final do filme -- talvez um dos melhores finais já filmados pelo ser humano. Além disso sua última fala não é nada menos do que sensacional.


Para sustentar toda essa parafernalha sentimental e filosófica, Bergman utiliza-se da fotografia tradicionalmente genial de Sven Nykvist (você nunca irá falar de Bergman sem falar de Sven Nykvist). Os planos são excelentes. A fotografia de Nykvist é inspirada, leve, quase flutuante. Nas cenas do quarto onde Karin tem suas alucinações "com o outro mundo", a câmera fica estratégicamente posicionada em plano aberto, como se nós fossemos as pessoas que são citadas por Karin.

Através de um Espelho é o primeiro filme da "Trilogia do Silêncio", que é seguida de Luz de Inverno e O Silêncio. O tal silêncio, neste filme, não são um, mas vários. O de Deus, por aparentemente só se comunicar com a menina esquizofrênica (em um conceito mais filosófico, talvez ela nem esteja louca, como se pensa). Pode também ser um silêncio mais claro, como o de David para Minus. Enfim, o silêncio no filme de Bergman é torturante. E o modo, a leveza como o diretor conduz sua obra é fascinante. Em resumo, Através de um Espelho é soberbo, perfeito, genial. Mas, claro, se tratando de Bergman, você já sabia disso.

Nota: 5 estrelas em 5

Por Victor Bruno

1 comentários:

interessante como bergman nos deixa a aflição do contato. a última fala do garoto Minus é o cimo da montanha ruma a quebra do silêncio (talvez tenha sido exagero meu, mas é por ai). quando os personagens despencam e se chocam. a cena é simples e a genialidade de bergman a faz com uma leveza que quase contrasta o peso daquelas cenas com a interpretação em pessoa (Harriet). enfim, parabéns pela crítica Vitor, também gosto muito desse. fica a sugestão de escrever algo sobre gritos e sussurros, a hora do lobo, também geniais. valeu.

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