Såsom i en spegel, 1961 / Dirigido por Ingmar Bergman
Com Lars Passgård, Harriet Andersson, Gunnar Björnstrand e Max von Sydow
Para começar, um trecho da Bíblia:"No presente vemos por um espelho e obscuridade; então veremos face a face. No presente conheço só em parte; então conhecerei como sou conhecido."O trecho reproduzido acima está presente na primeira epístola aos coríntios, no capítulo 13. Mas por que eu reproduzi um trecho da Bíblia nesta crítica? Ora, por que este é um trecho de fundamental importância para a compreensão da obra-prima de Ingmar Bergman, Através de um Espelho.
Mais uma vez o cineasta suéco volta ao tema da família, no seu típico cinema humanístico. Através de um Espelho é uma desconstrução sentimental de uma família desestruturada psicológica e espiritualmente (como tantas outras no cinema bergmaniano, vide Fanny & Alexander). Gente egoista, racionalista e desesperada povoa a tela de Ingmar Bergman neste filme. Esta "gente" sofre como nunca e precisa de carinho.
Neste filme esta "gente" são David (Gunnar Björnstrand, o egoísta racionalista), Minus (Lars Passgård, o filho desesperado que busca atenção), Karin (Harriet Andersson, a filha louca) e Martin (Max von Sydow, o único sensato do filme). Num dia de verão eles resolvem viajar para a casa de praia, afim de comorar a saída recente de Karin do hospital. A cena inicial, cruelmente irônica, não é nem reflexo do que veremos pelos próximos 90 minutos. Eles estão felizes, tomando banho no mar. Mas logo veremos que nada daquilo é real, é tudo fachada para o sofrimento que cerca aquelas quatro pessoas.
Agora, vamos analisar um pouco a obra. O título Através de um Espelho vem diretamente do trecho da Bíblia citado no início da crítica. O significado que os estudiosos teólogos aplicam a esta passagem é que não se pode compreender a vida em sua integridade enquanto estamos neste mundo (aos olhos da filosofia cristã, é claro). É preciso passar para o outro plano -- ou, para o outro lado do espelho, se quiseres algo mais poético -- para compreender tudo. Observe o trecho final: "No presente só conheço em parte; então conhecerei como sou conhecido." Isso é a justificativa para o título certo? Errado. Isso é a justificativa para todo o Através de um Espelho. Bergman, neste filme, faz uma viagem de conhecimento interior.
A personagem mais interessante do filme é, sem dúvidas Karin, numa interpretação inspirada de Harriet Andersson. Ela vive entre dois mundos, o real e o das suas alucinações. Mas este mundo alternativo, se bem analisado, pode ser o outro lado do espelho do trecho citado na epístola aos coríntios. Dentro da cabeça de Karin uma voz (que pode ser a de Deus, talvez) guia suas ações. E são estas ações que acendem a pólvora da trama.
O estudo das personagens continua, mas sempre gravitando ao redor. A viagem de conhecimento interior guiada por Bergman continua na persona desgastada e sofredora do escritor David, interpretado magistralmente por Gunnar Björnstrand. O olhar perdido, às vezes perplexo, de Björnstrand condiz perfeitamente com a sua personagem. Suas ações são egoístas (ele chega ao ponto de dizer que gostaria de se matar pelo simples fato de não aguentar o sofrimento, revelando aí uma personalidade misantrópica) e condescendentes, não importa se é com o seu filho. Aliás, seu filho Minus é, pelo menos para mim, a verdadeira personagem principal deste filme. O Minus de Lars Passgård é quem leva toda a carga dramática do filme. Todas as ações das personagens vão influir diretamente na personagem de Passgård. Isso fica bem claro no seu olhar perplexo ao final do filme -- talvez um dos melhores finais já filmados pelo ser humano. Além disso sua última fala não é nada menos do que sensacional.
Para sustentar toda essa parafernalha sentimental e filosófica, Bergman utiliza-se da fotografia tradicionalmente genial de Sven Nykvist (você nunca irá falar de Bergman sem falar de Sven Nykvist). Os planos são excelentes. A fotografia de Nykvist é inspirada, leve, quase flutuante. Nas cenas do quarto onde Karin tem suas alucinações "com o outro mundo", a câmera fica estratégicamente posicionada em plano aberto, como se nós fossemos as pessoas que são citadas por Karin.
Através de um Espelho é o primeiro filme da "Trilogia do Silêncio", que é seguida de Luz de Inverno e O Silêncio. O tal silêncio, neste filme, não são um, mas vários. O de Deus, por aparentemente só se comunicar com a menina esquizofrênica (em um conceito mais filosófico, talvez ela nem esteja louca, como se pensa). Pode também ser um silêncio mais claro, como o de David para Minus. Enfim, o silêncio no filme de Bergman é torturante. E o modo, a leveza como o diretor conduz sua obra é fascinante. Em resumo, Através de um Espelho é soberbo, perfeito, genial. Mas, claro, se tratando de Bergman, você já sabia disso.
Nota: 5 estrelas em 5
Por Victor Bruno
1 comentários:
interessante como bergman nos deixa a aflição do contato. a última fala do garoto Minus é o cimo da montanha ruma a quebra do silêncio (talvez tenha sido exagero meu, mas é por ai). quando os personagens despencam e se chocam. a cena é simples e a genialidade de bergman a faz com uma leveza que quase contrasta o peso daquelas cenas com a interpretação em pessoa (Harriet). enfim, parabéns pela crítica Vitor, também gosto muito desse. fica a sugestão de escrever algo sobre gritos e sussurros, a hora do lobo, também geniais. valeu.
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