quinta-feira, 23 de junho de 2011

Soberba

The Magnificent Ambersons, 1942 / Dirigido por Orson Welles
Com Tim Holt, Joseph Cotten, Dolores Costello, Anne Baxter, Agnes Moorehead, Richard Bennet e a voz de Orson Welles

(5/5)

Quando Soberba tem início, a narração em tom nostálgico e melancólico logo observa: “O esplendor dos Ambersons começou em 1873”. Uma informação fundamental. Aliada com a imagem inicial, um plano ao nível do olho da casa onde os Ambersons vivem, logo somos avisados que estamos falando de uma família importante, um fato que será confirmado e de suma importância. Estamos falando de patrícios, pessoas que nós, os mortais da classe média, almejamos ser. Vamos ser honestos, quem não quer viver uma vida de luxo, comprando o que quer, indo a festas? A menos que você seja um comunista que vive um modelo de vida espartano, ou um ermitão, você quer viver, exatamente, a vida que acabei de descrever.

Lentamente, o quadro onde os Ambersons vivem suas vidas é construído, numa longa e elegante montagem habilmente construída pelo mágico (literalmente) Orson Welles. Welles, durante esta obra-prima estuprada pela RKO, estúdio cujo Welles tinha contrato quando produziu este retrato genial da antiga nobreza norte-americana, utiliza alguns recursos visuais que transformam essa seqüência na melhor parte do filme: Observe como o diretor, inteligentemente, borra de branco as extremidades superiores e inferiores dos enquadramentos, o que reforça a idéia de que – a princípio – esta primeira parte da obra é um conto de fadas. Repare também na cena em que George, ainda pequeno (Bobby Cooper o interpreta nesta parte do filme), está levando uma bronca da sua família. Veja como a casa dos Ambersons, ao fundo, parece erguer-se como um castelo saído diretamente de um conto de fadas.

Mas antes de ser um conto de fadas, a seqüência inicial de Soberba é um aviso poderoso do que estar porvir. A presunção e arrogância de George, a vida mundana que Isabel (Dolores Costello), mãe de George, parece levar (eu disse parece), e as festas e serenatas e bebedeiras constantes que ocorrem na mansão Amberson são um anúncio da queda monumental daquilo que parece ser uma monarquia.

Welles insiste em frisar: Ser um Amberson é ser um ser que, por natureza, é (ou parece ser) superior a tudo e a todos. Quando chegamos ao período em que o filme realmente acontece, Lucy Morgan (a bela Anne Baxter) observa enquanto dança com George (Tim Holt, que guarda grandes semelhanças físicas com Orson Welles), agora adulto: “Finalmente percebi o que é ser um Amberson”.

Essas pequenas pérolas que citei são mostras do poder de fogo que Orson Welles tem. Em qualquer um de seus filmes, Welles vai te provocar uma sensação de imenso erro. Seja no monumental plano-seqüência (cena sem cortes) inicial de A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), seja na tentativa de suicídio de Susan Alexander em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), o erro (ou a sensação disso) é presença constante.

Soberba é uma fábula do que poderia ser o correto, mas não é. Soberba é o declínio do império americano. É um conto sobre tempos que não voltam mais, o passado sendo projetado numa tela de cinema. Soberba é – acima de tudo – um soco no estômago de uma classe social inalcançável. É o troco que todos queríamos dar em políticos, playboys, socialites. O tema de Soberba – ganância, desonra e a própria soberba – será atual em qualquer momento da história da humanidade. Soberba dos homens e mulheres que comandam a vida na terra, aliás, fala das suas quedas.

A sensação de nostalgia e perda neste filme é tão presente, é tão densa, que você quase pode pegar e cortar com uma faca. Não poderia ser diferente. A adaptação do premiado romance de Booth Tarkiginton pertence a este universo, do que tínhamos, do que poderíamos ser. Principalmente em seu último terço, The Magnificent Ambersons é uma reavaliação do que poderíamos ter feito. Por isso o seu final (o seu verdadeiro final) é tão doloroso. Uma revisão dos erros e acertos em nossas vidas. Você, independente da sua classe social, poderia estar no lugar de George.

Orson Welles, o grande Orson Welles, faz questão, também, de utilizar metáforas visuais absolutamente brilhantes, durante a sua obra. Vejamos a cena do baile, por exemplo, logo no início do filme. Caminhamos junto com as personagens Lucy e Eugene (é um plano-seqüência similar ao de Os Bons Companheiros e ao de A Época da Inocência, inclusive com os personagens na mesma posição) saindo da uma nevasca enorme que açoita a casa dos Ambersons. Enquanto isso, o narrador diz que aquela é a última grande festa na casa da família. A nevasca é um simbolismo, simboliza a enorme nuvem de tempestade que está se formando. E não tenha dúvidas: Será naquela festa em que George flertará com Lucy, para, somente depois ver o quão errado a tratou e a todos ao seu redor. Será naquela festa que Eugene (Joseph Cotten, como sempre competentíssimo), pai de Lucy, flertará com Isabel, vinte anos depois de ele ter desistido do seu amor; um ato que levará George à loucura, num acesso de ciúme que nos faz questionar se o que ele está fazendo é defender a sua mãe de alguém como Eugene – um investidor no ramo de automóveis (uma atividade que no início do século XX parecia não levar a lugar algum –, ou se seus sentimentos nutrem uma aura incestuosa. Acredito-me que George simplesmente tem uma birra ridícula contra Eugene, visto que é da sua natureza agir dessa maneira. Ele se recusa, mesmo quando os Ambersons já não são mais o que costumavam ser, que Eugene é o futuro – ele esteve certo sobre os automóveis e agora é o substituto dos Ambersons.

Observe que nesta mesma cena, o tão querido deep focus (quando a câmera deixa todo o quadro em foco definido) de Welles funciona de maneira arrasadora. Veja que ele – com auxílio do maravilhoso fotógrafo Stanley Cortez – fazem questão de enquadrar a conversa da última geração dos gloriosos Ambersons, representada aqui por George, e Lucy, para, ao fundo, mostrar a glória dos Ambersons que se vai, representada pelo último baile na mansão.

De todas as maneiras, talvez por culpa da montagem/estupro feita pela RKO, que tirou 56 dos 144 minutos originais de Soberba, o filme parece focar somente em George. OK, ele é o personagem principal da trama, e talvez por conta das suas ações burras – aliada ao egoísmo dos Ambersons (os Vangers do romance “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” ficam no chinelo) – acarretem na queda da família. Se não foi culpa dele, ele ajuda a aumentar a profundidade do poço.

Por outro lado, essa ultra-exposição que o filme confere a George ajuda a aumentar a construção da sua personalidade (creio que se o corte de Welles fosse o que conhecêssemos, a construção da personagem ficaria resumida ao flashback inicial, como acontece com Isabel e os outros).

Mas isso me leva a uma questão importante: Já que George é tão cínico e parece ter uma personalidade tão forte, por que Tim Holt parece ser tão duro, estático e inexpressivo? Não sei. Talvez seja por que George seja o tipo do cara retraído e introspectivo que... não, não. Não pode ser isso. É uma má interpretação mesmo. E se não for, é por que Joseph Cotten, magistral, lhe faz sombra.

Por essas e outras, Soberba pode até não ser tão bom quanto Cidadão Kane, mas é um filme exemplar. Um filme para qualquer geração. É atemporal. Tão único que é o único filme em que a cena final é desnecessária. Se Ambersons terminasse uma cena antes da que se passa num hospital, seria perfeito, mas não é culpa de Welles.
 
Mutilado ou não, Soberba é um filme obrigatório. Uma referência, influenciando cineastas como Martin Scorsese em diversos filmes. Repare que Scorsese utiliza a técnica de dissolver um quadro em outro, mantendo a posição da câmera, em, no mínimo, dois filmes (O Aviador e Época da Inocência, filmes que também falam da queda de famílias/pessoas poderosas), o que cria uma passagem de tempo elegante e ágil.

Para mim, isso só torna os filmes de Welles mais e mais interessantes, e indispensáveis.

Sou sedento por Orson Welles.

Por Victor Bruno
23/06/2011

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