8½, 1963 / Dirigido por Frederico Fellini
Com Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimeé e Sandra Milo
(5/5)
Fellini foi o diretor responsável em introduzir o surrealismo no cinema italiano, ao misturar temas de caráter sério às mais psicodélicas formas de expressar a arte. Para ele não havia barreiras entre sonhos, realidade, arte, imagens, cores, sons, memórias, presente, passado, futuro... enfim, tudo isso sempre foi uma massa homogênea na cabeça dele, e seus filmes são a maior prova disso. 8½ é conhecido hoje como a maior representação desse estilo onírico do diretor, por conter em sua essência assuntos de importâncias gigantescas sendo desenvolvidos através das mais improváveis narrativas. Sonhos, memórias, religião, cinema, filosofia, sexo e amor são apenas alguns desses temas tão intensos, que isolados já servem de combustível para um filme inteiro, mas que se unem em um só ingrediente, o mais essencial para o desenrolar de toda a trama: a metalinguagem.
Para quem já assistiu à esse clássico, ficam evidentes as semelhanças entre a realidade e a ficção, de modo que nunca dá para saber até que ponto se encerra uma e inicia-se outra. De fato, Fellini admitiu abertamente que 8½ é um tipo de autobiografia, que passeia por momentos grandes de sua vida, passando por antigos sonhos e lembranças, até chegar à situação atual do diretor naquela época. O ator escalado para encarnar essa imagem espelhada de Fellini é Marcello Mastroianni, um dos grandes parceiros do cineasta, e o personagem em questão é Guido, um cineasta que está passando por uma grande crise de inspiração na realização de sua nova produção. Em meio à devaneios e lembranças, Guido colocará em uma balança tudo o que já passou por sua vida, tentando então estabelecer prioridades que lhe dêem um novo rumo a seguir. Nessa jornada de redescobertas e dolorosas recordações, ele então procurará achar um ponto de inspiração para finalizar seu novo filme.
Três grandes elementos encabeçam a lista de infindáveis lembranças de Guido, talvez a trinca de ases mais mal resolvida de sua vida: seus romances, sua infância e a religião. No que diz respeito aos romances, Guido teve vários e parece nunca conseguir parar. Sua esposa oficial é Luisa, seu grande amor. Suas amantes, no entanto, são infindáveis. Em nenhuma delas ele consegue encontrar satisfação sexual, emocional e intelectual ao mesmo tempo, de modo que nunca se mantém fiel a nenhuma. O resultado é de infindáveis decepções, especialmente com Luisa, que não aceita suas puladas de cerca, mas que parece ser a única que consegue despertar em Guido um tipo de esperança (a semelhança física dela com o estilo de Giulietta Masina, real esposa de Fellini, é inegável).
O segundo assunto em questão é a infância de Guido. Nesse ponto o filme atinge o máximo possível de abstração, perdendo-se em ininteligíveis devaneios na memória confusa de Guido, desde os momentos de felicidade ao lado da mãe até seus traumas mais complexos envolvendo a religião, responsável em oprimi-lo numa época de inocência. Os simbolismos aparecem em enxurrada quando esses assuntos são levantados, às vezes repletos de extravagâncias e pouco preocupados em esclarecer algo ao espectador.
Como já mencionado, a narrativa é bastante irregular (no bom sentido da palavra). Não há divisões concretas entre a realidade e a ficção, obrigando o espectador a redobrar a atenção para saber separá-las. No decorrer de uma cena "normal", por exemplo, podem subitamente aparecer elementos surreais interagindo com os personagens da maneira mais natural possível, montando um verdadeiro palco de bizarrices. Por trás dessa salada mista há ainda críticas sociais e profundas reflexões do próprio Fellini, como é o caso de sua preocupação em fazer um filme verdadeiro, sem mentiras, que seja para o público algo mais do que mero entretenimento casual. Há ainda sua repulsa aos críticos pseudo-intelectuais que insistem em analisar seus filmes nos moldes tradicionais e não percebem seu coração por trás de tudo. Por fim, há um tipo de mensagem de redenção, onde ele deseja reparar erros do passado e reencontrar seu rumo na vida, nem que para isso precise cometer novos erros.
A metalinguagem, por fim, é usada para mostrar o poder da criatividade dentro da ficção. Exemplifica o ápice da vida imitando a arte, e vice-versa. Serve para explicar que a arte nem sempre é compreendida e nem precisa ser, desde que cause impacto ao tocar o espectador com temas de grande e inesgotável profundidade. Talvez confunda um pouco o público com suas imagens sendo sobrepostas sem nenhum tipo de aviso (há momentos em que os próprios personagens param para assistir o filme ao lado do espectador), mas está justamente nesse ponto seu grande diferencial.
Se a vida é tão louca, inexplicável e difícil de levar, ninguém melhor do que a arte para compreendê-la. É por isso que 8½ propõem essa fusão das duas numa única fórmula, brindando o espectador com uma explosão de criatividade mista em melancolia. Afinal, é entre o choro e o riso, o concreto e o abstrato, o real e o imaginário, que cada ser humano tenta encontrar um rumo para seguir.
Por Heitor Romero
04/05/2011
(5/5)
Fellini foi o diretor responsável em introduzir o surrealismo no cinema italiano, ao misturar temas de caráter sério às mais psicodélicas formas de expressar a arte. Para ele não havia barreiras entre sonhos, realidade, arte, imagens, cores, sons, memórias, presente, passado, futuro... enfim, tudo isso sempre foi uma massa homogênea na cabeça dele, e seus filmes são a maior prova disso. 8½ é conhecido hoje como a maior representação desse estilo onírico do diretor, por conter em sua essência assuntos de importâncias gigantescas sendo desenvolvidos através das mais improváveis narrativas. Sonhos, memórias, religião, cinema, filosofia, sexo e amor são apenas alguns desses temas tão intensos, que isolados já servem de combustível para um filme inteiro, mas que se unem em um só ingrediente, o mais essencial para o desenrolar de toda a trama: a metalinguagem.
Para quem já assistiu à esse clássico, ficam evidentes as semelhanças entre a realidade e a ficção, de modo que nunca dá para saber até que ponto se encerra uma e inicia-se outra. De fato, Fellini admitiu abertamente que 8½ é um tipo de autobiografia, que passeia por momentos grandes de sua vida, passando por antigos sonhos e lembranças, até chegar à situação atual do diretor naquela época. O ator escalado para encarnar essa imagem espelhada de Fellini é Marcello Mastroianni, um dos grandes parceiros do cineasta, e o personagem em questão é Guido, um cineasta que está passando por uma grande crise de inspiração na realização de sua nova produção. Em meio à devaneios e lembranças, Guido colocará em uma balança tudo o que já passou por sua vida, tentando então estabelecer prioridades que lhe dêem um novo rumo a seguir. Nessa jornada de redescobertas e dolorosas recordações, ele então procurará achar um ponto de inspiração para finalizar seu novo filme.
Três grandes elementos encabeçam a lista de infindáveis lembranças de Guido, talvez a trinca de ases mais mal resolvida de sua vida: seus romances, sua infância e a religião. No que diz respeito aos romances, Guido teve vários e parece nunca conseguir parar. Sua esposa oficial é Luisa, seu grande amor. Suas amantes, no entanto, são infindáveis. Em nenhuma delas ele consegue encontrar satisfação sexual, emocional e intelectual ao mesmo tempo, de modo que nunca se mantém fiel a nenhuma. O resultado é de infindáveis decepções, especialmente com Luisa, que não aceita suas puladas de cerca, mas que parece ser a única que consegue despertar em Guido um tipo de esperança (a semelhança física dela com o estilo de Giulietta Masina, real esposa de Fellini, é inegável).
O segundo assunto em questão é a infância de Guido. Nesse ponto o filme atinge o máximo possível de abstração, perdendo-se em ininteligíveis devaneios na memória confusa de Guido, desde os momentos de felicidade ao lado da mãe até seus traumas mais complexos envolvendo a religião, responsável em oprimi-lo numa época de inocência. Os simbolismos aparecem em enxurrada quando esses assuntos são levantados, às vezes repletos de extravagâncias e pouco preocupados em esclarecer algo ao espectador.
Como já mencionado, a narrativa é bastante irregular (no bom sentido da palavra). Não há divisões concretas entre a realidade e a ficção, obrigando o espectador a redobrar a atenção para saber separá-las. No decorrer de uma cena "normal", por exemplo, podem subitamente aparecer elementos surreais interagindo com os personagens da maneira mais natural possível, montando um verdadeiro palco de bizarrices. Por trás dessa salada mista há ainda críticas sociais e profundas reflexões do próprio Fellini, como é o caso de sua preocupação em fazer um filme verdadeiro, sem mentiras, que seja para o público algo mais do que mero entretenimento casual. Há ainda sua repulsa aos críticos pseudo-intelectuais que insistem em analisar seus filmes nos moldes tradicionais e não percebem seu coração por trás de tudo. Por fim, há um tipo de mensagem de redenção, onde ele deseja reparar erros do passado e reencontrar seu rumo na vida, nem que para isso precise cometer novos erros.
A metalinguagem, por fim, é usada para mostrar o poder da criatividade dentro da ficção. Exemplifica o ápice da vida imitando a arte, e vice-versa. Serve para explicar que a arte nem sempre é compreendida e nem precisa ser, desde que cause impacto ao tocar o espectador com temas de grande e inesgotável profundidade. Talvez confunda um pouco o público com suas imagens sendo sobrepostas sem nenhum tipo de aviso (há momentos em que os próprios personagens param para assistir o filme ao lado do espectador), mas está justamente nesse ponto seu grande diferencial.
Se a vida é tão louca, inexplicável e difícil de levar, ninguém melhor do que a arte para compreendê-la. É por isso que 8½ propõem essa fusão das duas numa única fórmula, brindando o espectador com uma explosão de criatividade mista em melancolia. Afinal, é entre o choro e o riso, o concreto e o abstrato, o real e o imaginário, que cada ser humano tenta encontrar um rumo para seguir.
Por Heitor Romero
04/05/2011
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