Com Liv Ullmann, Ingrid Bergman, Lena Nyman
(5/5)
Quando o assunto é família, nenhuma abordagem, conclusão, idéia, argumento ou filosofia é simples. As relações familiares são, na certa, as mais difíceis de analisar e entender, por mais que sejam presentes no nosso cotidiano durante toda a vida. Isso porque o ser humano nasceu biologicamente programado para amar a família, aqueles que carregam nas veias o mesmo sangue; mas entra aí um grande impasse no decorrer da vida da grande maioria: lidar com as decepções que nos são acometidas por um parente próximo, um pai ou uma mãe talvez. Na maioria das vezes deixamos passar despercebidas as falhas dessas pessoas, com a idéia fixa de que “família é família”. Portanto, vêm algumas perguntas inevitáveis: nós realmente perdoamos nossos familiares? As feridas causadas por eles podem ser fechadas? Como elas nos afetam a curto e a longo prazo? É possível odiar algum membro próximo de nossa própria família? Em Sonata de Outono, de Ingmar Bergman, todas essas questões são levantadas em uma abordagem crua e seca do relacionamento entre uma mãe e suas filhas.
Charlotte (Ingrid Bergman) é uma famosa pianista que vai passar uns dias na casa de sua filha, Eva (Liv Ullmann). O que, a princípio, era apenas um saudável reencontro depois de anos, torna-se uma grande lavação de roupa suja quando Charlotte descobre a presença de sua outra filha na casa, Helena (Lena Lyman), uma deficiente mental. Agora Charlotte terá de, depois de anos fugindo do assunto, encarar frente a frente Eva e Helena, e colocar em pratos limpos toda a sujeira de um passado marcado por negligência a ausência.
Nesse drama a figura materna ganha um aspecto diferenciado daquele que geralmente nos vêm à mente, cheio de amor e compreensão. Charlotte é uma mãe omissa, que dedicou toda sua vida aos seus concertos de piano, colocando Helena num asilo e deixando Eva na solidão. Isso, ao contrário do que ela poderia imaginar, marcou Eva de uma maneira irreversível, e somente nessa visita que toda essa revolta virá à tona. Agora ficará clara a fragilidade da relação dessas três mulheres, assim como será exposta a dificuldade em lidar com tantos sentimentos densos, como perdão e reparação, entre família.
Entra então a genialidade de Bergman em captar esses momentos entra em ação. Não há espaço para grandiloqüências estéticas ou muita frescura e sentimentalismo, assim como o roteiro nunca toma partido a favor de um personagem. Bergman se limita a apenas retratar uma situação, sem apontar culpados e inocentes, focando-se em expor a forma como alguns temas multiplicam de intensidade e força quando o contexto é o âmbito familiar. Afinal, tudo o que Eva foi submetida graças à Charlotte deveria ser combustível para alimentar um sentimento de ódio eterno; mas será possível odiar a própria mãe, a figura mais forte e presente no conceito geral de família?
A atuação do trio de atrizes principais é algo memorável. Liv Ullmann, atriz-fetiche de Bergman, como sempre, ganha o papel mais denso e repleto de camadas. Eva se mostra doce e carente a princípio, recebendo sua mãe com todo o carinho que se poderia esperar de uma filha, e cuidando de Helena com extrema abnegação. Mas com o desenrolar da trama entenderemos todos os traumas dela, os sentimentos reprimidos, de modo que ela vai adquirindo outra imagem, agora mais incisiva e menos passiva. Ingrid Bergman, por outro lado, tem uma performance baseada na “desconstrução” de sua personagem. Num primeiro momento Charlotte se mostra altiva e poderosa, mas vai se desmoralizando com o remorso e com a consciência pesada por nunca ter sido uma boa mãe, mostrando enfim redenção, e ficando à mercê do perdão de suas filhas. Lena Lyman, que interpreta Helena, tem a oportunidade de mostrar um talento cênico apuradíssimo, nunca caindo na tentação de exagerar demais nas caras e bocas, e focando-se numa linguagem corporal essencial para arrebatar o espectador com a condição deplorável de sua personagem, que além de sofrer com suas deficiências físicas, deve aturar o desprezo e repulsa de sua mãe.
Por trás de tudo, como um fio condutor que une todo esse leque de temas tão profundos, há uma atmosfera musical muito presente, responsável em nomear o filme. A música é algo em comum entre os personagens e sua influência naquela família é tanto benéfica quanto opressiva. Afinal, apesar de todos ali amarem a música, foi ela a responsável em manter Charlotte tanto tempo longe de suas filhas e marido.
Sonata de Outono é um filme completo, competente ao abordar com eficiência máxima tudo o que se propõe a analisar. Talvez seja um exemplar raro de filme que expõe a família com tanta clareza e verdade, sem se apegar a estereótipos falidos e a regras infundadas que reinam sobre tantas outras produções. Nunca antes (e nunca depois, até agora) o cinema se mostrou tão frio, e ao mesmo tempo intenso, ao colocar em pauta temas tão pertinentes na sociedade, em especial a difícil e nunca bem compreendida tarefa de amar as pessoas que estão ligadas a nós eternamente por laços inquebráveis.
Por Heitor Romero
02/05/2011
1 comentários:
um dos meus prediletos junto com o kurosawa. vou conferir!
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