The Children's Hour, 1961 / Dirigido por William Wyler
(5/5)
Existem mais, mas considero dois filmes fundamentais quando trata-se de mentira. São eles Dúvida (Doubt, 2007), de John Patrick Shanley e este Infâmia. Cada um, ao seu próprio modo, faz uma investigação sobre o poder destrutivo e corrosivo da mentira. Mas existem grandes diferenças entre os dois. Enquanto as personagens de Dúvida procuram um meio de escaparem ilesas das calúnias que recebem, em Infâmia elas sequer têm essa chance. As consequências chegam rápida e catastroficamente.
Dirigido por um William Wyler que acabara de sair de um épico de escala gigantesca – o clássico (e falho) Ben-Hur (Ben-Hur, 1958), Infâmia fala de um tema espinhosíssimo: lesbianismo. Se nos dias de hoje as pessoas torcem o nariz e consideram a homossexualidade uma aberração (e não me digam que estamos numa era mais avançada e aberta, por favor), imagine em 1961, quando Wyler lançou esse filme. Aliás, era tão ousado que até hoje o filme é um dos mais obscuros da carreira de Wyler, que já não é tão idolatrado assim como, por exemplo, Howard Hawks, outro ícone da Velha Hollywood. Na época o filme foi difícil – principalmente com o maldito Código Hays, o maior atraso mental da História do Cinema, já que jamais seria permitido um filme sobre homossexualidade explícita. Foi então que John Michael Hayes, que escreveu quatro filmes para Hitchcock, pegou foi lá e escreveu o roteiro.
Infâmia, que baseia-se numa peça de Lilian Hellman, já havia sido adaptada por Wyler para as telonas, mas com uma trama irreconhecível e banal: uma mulher se apaixona por um cara que se casará em breve com a sua melhor amiga. Infâmia (These Three, 1936), foi sucesso de crítica e público, mas – olhe só você – o filme ainda foi considerado ousado. Agora, se mesmo com uma relação heterossexual o filme foi surpreendente, imagine uma adaptação com um texto fiel ao original. Portanto, este Infâmia fala da suposta relação homossexual entre as protagonistas – Karen (Audrey Hepburn) e Martha (Shirley MacLaine) – da forma mais discreta possível e, não surpreendentemente, as palavras “lésbicas”, “homossexuais” e correlacionados são evitados sempre quando possível – logo Hayes conta a história da forma mais discreta possível, o que até é bom. Evitar uma abordagem mais explícita transformaria o longa numa coisa bastante vulgar. Um dos pontos de acerto do filme é exatamente esta abordagem – desintencionalmente, penso eu – mais elegante, o que confere um encanto maios ao filme. Duvido que se Infâmia fosse feito nos dias de hoje causaria o mesmo impacto para o espectador.
Mas vamos aos fatos: Karen e Martha são duas professoras que acabaram de montar uma escola (apesar do filme não contar onde o filme se passa, tudo indica que seja na Costa Leste, conforme aponta o crítico Sérgio Vaz) para meninas. Karen se casará em breve com Joseph Cardin, um médico amigo das duas. O problema é que Martha tem uma personalidade absurdamente possessiva, conforme observa a Sra. Mortar (Miriam Hopikins), sua tia. Num certo dia Martha e a Sra. Mortar brigam violentamente. Mas o que ninguém sabe é que atrás da porta está Rosalie (Veronica Cartwright), uma das alunas. O que ela escuta? Coisas escabrosas para uma criança. Mortar diz que a amizade das duas é (preste bem atenção na próxima palavra, ela é fundamental para a trama) anormal.
Mas a tragédia só começa de verdade quando Rosalie conta a história para Mary Tilford (Karen Balkin, que jamais conseguiria um papel de destaque novamente). Mary é o diabo em pessoa: mentirosa, manipuladora, insolente, etc. Por ter essa personalidade tão asquerosa, vive sendo castigada pelas professoras. Num dia, quando apronta uma grande, ela resolve fofocar para a avó, e acaba aumentando a história,inserindo verdades e mentiras.
De fato, tudo parte do princípio de que quem conta um conto aumenta um ponto. Todo mundo mente, certo? O que temos aqui é um caso de uma mentira – que eu poderia dizer que é simples, mas aí eu estaria mentindo. Talvez seja simples. Levando em consideração que Mary é uma criança, eu poderia dizer, também, que ela não tem consciência do que está dizendo. Esta é a visão que os adultos têm das crianças. Mas o roteiro de Hayes constrói de forma divina a personalidade de cada personagem, tendo este aspecto reforçado pela direção minimalista de Wyler. Desde o primeiro segundo de projeção nós conhecemos como cada personagem age: Martha é estressada e temperamental já na sua primeira cena, quando não quer ajeitar as comidas no banquete que está sendo preparado, jogando a tia de qualquer maneira no fogo cruzado (mais tarde o filme explicará a causa desse desprezo, numa das cenas mais geniais e impactantes já filmadas pelo homem), ao passo que Karen exibe uma serenidade incrível, numa atuação exemplar de Audrey Hepburn (talvez este seja o melhor papel da sua carreira), uma tranquilidade impassível – mesmo quando as situação foge do controle.
Mas talvez a melhor atuação do elenco seja a de Karen Balkin. A menina é um demônio, a encarnação do Mal (sim, com “m” maiúsculo, a instituição da maldade). Assim como a dupla principal, Mary tem sua personalidade estabelecida logo na primeira cena, atuando com uma teatralidade quase amadora – reforçando o seu caráter corrompido e ímpio. Aliás, ela é capaz de soltar pérolas como “Você está me achando bonita, vovó? Impossível. Do jeito que eles me tratam aqui, não sei como ainda não fiquei com cabelos brancos.”
De fato, as os nuances, peculiaridades e singularidades de Infâmia vêm justamente de Mary. Não apenas de Mary, mas sim de pequenos acontecimentos, pequenos fatos que, sozinhos, parecem tão simples, tão banais, mas juntos são ingredientes para o desastre. Acompanhe meu raciocínio: Se Mary não tivesse descoberto que Rosalie roubou a pulseira de Helen, Rosalie não teria por que ser chantageada por Mary para entrar no seu clube de meninas cujo principal juramento é “não traia uma outra integrante do clube” e, consequentemente, não teria que mentir para proteger Mary quando perguntada se o que a garota havia lhe dito (sobre o caso que as professoras supostamente têm) era verdade. Ainda existem outros exemplos, claro, mas contar mais estragaria o prazer do espectador.
O diretor Wyler ainda opta por recursos visuais de grande inteligência. Para começar, ele filma sem firulas. O visual de Infâmia é limpo, seco, sóbrio. E é interessante constatar isso pois Wyler, como disse na abertura da crítica, havia acabado de sair de um épico enorme – o moralista-ao-extremo Ben-Hur, lotado de imagens suntuosas, planos-gerais antony-mannísticos, o primeiro filme rodado em glorioso 70mm... bem, aqui ele filma em preto e branco. Para dar um aspecto claustrofóbico a situação ele utiliza um recurso que tornou muita gente famosa: O deep-focus – ou seja, planos em que todo o enquadramento está em foco, sem distorções na visão. A mesma técnica utilizada por Orson Welles e Gregg Tolland (grande fotógrafo) em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Wyler também opta por empregar poucos movimentos de câmera e o mais interessante: observe que durante quase todo o filme, exceto em duas cenas, Wyler e seu fotógrafo Franz Plasner enquadram Martha e Karen no mesmo plano.
Trabalhando com um tema difícil, Wyler fez uma das obras-primas mais impactantes da história do cinema. Um filme difícil de ser digerido, capaz de deixar qualquer um boquiaberto no fim da história. Pessoalmente, tenho apenas duas objeções quanto a obra: A atuação histérica de MacLaine – afinal, qualquer um pode apenas gritar e chorar e dizer que fez um papel de uma pessoa nervosa – e o fato da personagem de James Garner ter sido deixado de lado. Infâmia merece mais respeito. Assim como o artesão que o fez.
Por Victor Bruno
24/04/2011
1 comentários:
baixando!
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