Rango, 2011 / Dirigido por Gore Verbinski
O mundo da animação atual parece ser dividido em dois segmentos: os filmes Pixar e os não Pixar. Dentro do filão “não Pixar” existem dois subgrupos: os DreamWorks e o resto. Pois é dentro do “resto” em que nós encontramos pérolas como Rango. Pérolas raríssimas, diga-se de passagem. Contam-se nos dedos quantas vezes nós podemos ver filmes como este serem lançados anualmente. Filmes da qualidade técnica e com a sensibilidade de Rango. De um jeito bem simples, podemos dizer que esta obra de Gore Verbinski (de O Sol de Cada Manhã e da série Piratas do Caribe) é quando a sensibilidade e o primor técnico de O Fantástico Sr. Raposo (The Fantastic Mr. Fox, 2009) se encontram com o humor amalucado de Deu a Louca na Chapeuzinho (Hoodwinkled!, 2005). E esses filmes são excelentes.
Mas é preferível estar do lado de Raposo de Wes Anderson (A Vida Marinha com Steve Zissou, Viagem à Darjeeling) do que do lado de Chapeuzinho de Cory Edward. Raposo, além de ter uma plasticidade incrível (como é habitual na filmografia do seu diretor), realiza um estudo de personagem brilhante, ainda que meio acanhado. Lá o Sr. Raposo do título queria escapar da sua própria natureza. Queria ser uma raposa anti raposa, enquanto Deu a Louca na Chapeuzinho divertia seu público simplesmente fazendo uma subversão do gênero dos contos-de-fada. Não que isso não tenha seus devidos méritos. É interessantíssimo, além de arrancar grandes gargalhadas com seus momentos de comicidade. Só que o filme de Wes Anderson é mais corajoso e elegante. Afinal de contas, quem é o cineasta que faz análises psicológicas de seus personagens num filme cuja mídia é dominada pelas crianças, que estão se lixando para análises psicológicas. Mas é engraçado, por que a Pixar faz isso, e... bem, Toy Story 3.
Aqui nós temos algo similar. Com roteiro de John Logan (o mesmo roteirista de O Aviador e do próximo filme de Martin Scorsese, Hugo Cabret), baseando-se numa estória criada por Verbinski, James Ward Byrkit e pelo próprio Logan, o filme segue um camaleão (Johnny Depp) que, após um acidente de carro, perde a proteção da sua caixinha de areia e dos seus dois melhores “amigos” (um peixe mecânico e uma bonequa Barbie sem cabeça e sem roupas) e vai parar na seca e poeirenta cidade de... Poeira. Chegando lá, o camaleão – e o público – conhece uma situação extremamente caótica e miserável. Não há água em Poeira. Os cidadãos estão na mais absoluta seca. O último reduto de água que resta em Poeira é guardado à sete chaves pelo banqueiro da cidade: um enorme galão de água onde existe a marcação de dias que faltam para a água acabar.
Desde cedo o camaleão é avisado que não vai durar muito, seja pelo grupo de corujas mariachis que tocam a trilha sonora do filme (o tema, composto pela banda Los Lobos, é genial!), seja por Priscilla (voz de Abigail Breslin). Não importa, os prognósticos são os piores possíveis. Mas logo a situação muda. Depois de mentir, mentir e mentir mais ainda numa briga no clássico saloon da cidade (qual cidade do Velho Oeste não tem um saloon?), o camaleão, que agora adota o nome-fantasia de Rango, rapidamente transforma-se no herói da cidade, após matar acidentalmente a águia que ameaçava a todos, mocinhos e malvados, na cidade de Poeira. Mas os problemas estão longe de acabar. Portanto, o sinistro Prefeito (Ned Beatty), promove Rango ao cargo de xerife. Tudo bem, certo? Errado. A água da cidade some e o banqueiro é encontrado morto. Rango agora tem que fazer de tudo para sustentar a personagem que criou (afinal, ele nunca foi um pistoleiro na vida, muito menos sabe quem é) e manter a esperança de uma comunidade que já não tem mais em quem, ou o que, acreditar.
Aliás, o tema da crença em Rango é uma constante. O roteirista Logan modela a fé de diferentes formas dentro do seu filme. Se a aterrorizada comunidade de Poeira tem na fé e na esperança suas últimas chances de sobrevivência, já que a água parece algo tão distante e inalcançável, o Prefeito utiliza-se da fé para enganar sua comunidade. Numa cena particularmente brilhante do filme, ele diz: “Bem, Sr. Rango, as pessoas têm que acreditar em alguma coisa. Acreditar... acreditar. Acreditar em algo”. E Rango, por sua vez, acredita realmente que é um justiceiro que veio para salvar a pele da gente miserável de Poeira. Afinal, Rango é apenas um camaleão em séria crise de identidade. Uma crise tão séria que, quando indagado por Priscilla sobre quem ele é, Rango gagueja, gagueja... mas não consegue responder.
Mas talvez o que seja mais interessante dentro da obra de Verbinski (diretor extremamente versátil, por quem tenho uma profunda admiração desde que vi o tocante O Sol de Cada Manhã, com Nicholas Cage) sejam as referências cinematográficas inseridas neste filme. Elas começam desde... o próprio Rango. Veja como a camisa de Rango é idêntica a camisa que Raoul Duke (também interpretado por Johnny Depp) em Medo e Delírio (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998). Também reparem nos dois caras que dirigem o conversível que atropelam Rango. São os próprios Duke e Gonzo, de Medo e Delírio.
Felizmente o filme não se atém apenas nestas referências ao Cinema. Rango homenageia principalmente ao Western e ao Western spaghetti, gênero que revelou lendas do cinema como Clint Eastwood, Terence Hill, Sergio Leone, Franco Nero e tantos outros. Observe, por exemplo, a cena do duelo entre Jake Cascavel (Bill Nighy) e Rango. Os cortes nos olhos dos atores, assim como Leone fazia, para acentuar a tensão. Além de ser uma referência inteligentíssima, Verbinski realmente acentua a tensão realizando este jogo visual. Repare também como o Prefeito, apesar de estar em sua cadeira de rodas, ainda exala poder por todos os seus poros, tal qual Morton em Era Uma Vez no Oeste (Once Upon a Time in the West, 1968). E, claro, não podemos nos esquecer do Espírito do Oeste, personagem que Rango encontra num sonho, que não é nada mais do que uma versão digital de Clint Eastwood no seu traje de Homem Sem Nome, ou o próprio Jake Cascavel, que guarda enormes semelhanças com Lee Van Cleef em Três Homens em Conflito (Il bono, il bruto, il cattivo, 1966).
Apesar de contar com um visual simplesmente sensacional, desenvolvido pelo master Roger Deakins, que ano passado também desenvolveu o soberbo visual de Como Treinar Seu Dragão (How to Train Your Dragon, 2010), que flerta principalmente com uma paleta de cores pastéis, bem amareladas, para enfatizar a falta de água escandalosa daquela cidade; e de ter uma trilha sonora soberba, composta com Hans Zimmer (me flagrei fazendo batidas ritmadas durante a sequência da “metáfora”), Rango apresenta buracos enormes de desenvolvimento. Qual a função da raposa que chama Feijão (Isla Fischer) de “vaca”? Ou mesmo, por que insistir em colocar um affair amoroso entre Feijão e Rango? Algumas falhas de execução que estragam o resultado final.
Mas, de todo modo, Rango prova-se um filme inteligentíssimo, extremamente esperto. Rango é, para nós, assim como a água é para poeira: uma bênção. Uma pepita de ouro nesses dias de pobreza.
Por Victor Bruno
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